por daniel werle arenhart
Por volta de dois anos e meio depois de ter voltado, decidi passar a limpo e reviver os manuscritos da caderneta de viagem.
São relatos de uma viagem de bicicleta saindo de Estrela/RS - Brasil até a Patagônia no verão de 2017-2018.
Viajar de bicicleta
A motivação surgiu de viagens de bicicleta feitas anteriormente.
Citações:
“Todo sonho é uma derrota em potencial. Para não o realizar, basta manter-se parado” Argus Saturnino
“A liberdade reside nas coisas simples” Antonio Olinto
“Quando a gente tá contente, Tanto faz o quente, Tanto faz o frio” Gal Costa
Depois dos primeiros experimentos com cicloturismo, fazer uma longa viagem de bicicleta começou a me parecer algo mais simples do que imaginava. Foi quando percebi que poderia botar em prática. Escolhi o destino Patagônia e a medida que a ideia foi amadurecendo, fui conversando com as pessoas sobre o assunto. Sabia que esfriava bastante no sul, portanto o objetivo era sair antes do início do verão seguinte. A saída se deu por volta de um ano e meio depois da concepção da ideia. Não estava preso a uma rota, mas a que fazia mais sentido era seguir a sul, próximo a cordilheira dos Andes e depois talvez voltar de carona. Ainda não sabia quanto tempo levaria, mas seria menos de um ano. A viagem ocorreu em quatro meses, de outubro de 2017 à Fevereiro de 2018.
Nas primeiras experiências era usado o que se tinha à disposição. Mochilas ou bolsas penduradas no bagageiro e cobertores em vez de saco de dormir. Ao descobrir que existe o termo cicloturismo, acabei encontrando pessoas que são referências no assunto, como por exemplo o Olinto e a Rafaela, os Pedarilhos, entre outros. Escolhi e montei peça por peça da bicicleta para entender bem a mecânica, mas mal eu sabia que na viagem não precisaria nada mais além de passar óleo na correia, remendar câmara e trocar cabos. Para começar a viajar de bicicleta não é preciso se preparar muito, mas aproveitei que estava no conforto de casa para revisar se todo equipamento atendia às minhas necessidades, e então evitar ter que resolver algo na estrada. Me diverti escolhendo estrategicamente cada um dos itens que levaria buscando leveza, simplicidade, conforto e autossuficiência.
Busquei roupas adequadas para o frio seguindo o princípio das quatro camadas. Para cozinhar usei um fogareiro à álcool/etanol e utensílios básicos de cozinha. No lugar dos alforges, para carregar as coisas na bicicleta, usei baldes. No melhor estilo "faça você mesmo" ou "mulambiker", com pouca sofisticação, os baldes são facilmente fixados na bicicleta apenas com corda, promovendo durabilidade, confiabilidade e fácil reposição. Além de serem completamente impermeáveis, servem como assento e mesa em acampamento selvagem, podem ser usados para lavar roupas e diminuem as chances de furto.
Identifiquei alguns riscos que poderiam surgir durante a viagem e refleti sobre como evitá-los:
Roubo: Não é um risco vital, não dei muita importância, mas evitar capitais já é suficiente.
Ficar sem água: Sempre levei água extra para cozinhar, lavar louça e cuidar da higiene portanto caso faltasse, usaria apenas para beber. Além disso houve poucos trajetos longos onde não houvesse motoristas para quem poderia pedir ajuda.
Acidentes de trânsito: Evitar capitais e estradas mais movimentadas. A Argentina e Chile no geral tem menos trânsito que no Brasil.
Perder carteira e dinheiro: Levei junto cópias dos documentos e dinheiro separados da carteira.
A presença, o bom humor e o apoio das pessoas foi muito importante no dia da saída para começar a viagem. Meu irmão Rafael (Fafa) e meus amigos Matheus Bechert e Adriano (Tinanço) me acompanharam.
Uma chuva leve nos acompanhou durante o dia, principalmente quando saímos. Depois de nos afastar da cidade, quebrou o bagageiro do Fafa, mas logo em seguida encontramos um senhor em uma pequena oficina que o concertou. Ele não queria cobrar nada mas demos a ele uns reais. Ficamos num camping no interior do município de Sério.
Apesar de todo peso sendo carregado, a sensação ao iniciar uma viagem de bike é de extrema leveza ao deslizar suavemente sobre o chão, levando tudo que se precisa para viver com autossuficiência e em condições diversas.
Visitamos um paredão em uma propriedade particular no arroio Sampaio.
O Bechert e o Tinanço retornaram para suas casas. Fiquei feliz por eles terem saído junto. Seguimos em viagem eu e o Fafa em direção à Santa Maria, mas sem muita certeza de qual rota pegar. Além disso ainda não tínhamos onde pernoitar, então o Fafa fez uma ligação para o nosso amigo Matheus (Zhen) de Venâncio Aires que nos recebeu super bem. Fomos junto no aniversário do tio dele.
O sol começa a aparecer depois de dias com céu nublado. Chegando na cidade de Candelária, casualmente encontramos o Rainão, tio de um amigo nosso, que nos convidou para almoçar em sua casa e bater um papo. Eu nem sabia que ele morava em Candelária, então foi uma surpresa. Nos recomendaram pernoitar num parque de exposições onde tem água, luz e chuveiro. Estamos começando a nos adaptar melhor ao ritmo da nossa pedalada em dupla.
Em Agudo ficamos num balneário inativo com acesso a uma cachoeira. Não tinha ninguém. Vimos bugios.
Em Santa Maria, tivemos uma entrada tranquila na cidade, sem muito trânsito. Combinamos com nosso amigo estrelense Herinque (Ique) de nos encontrar na UFSM. Ficamos no seu quarto numa casa de estudante. Um alívio ter onde ficar numa cidade grande sem precisar ir atrás de hotel ou Warmshower (rede solidária de hospedagem). Agora o rumo era cruzar o Pampa até o Uruguai.
No final do dia em algum ponto entre Santa Maria e Rosário do Sul, conversamos com uns homens, em uma mecânica de ônibus, que nos cederam uma cabana onde passamos a noite. Nos convidaram para um mate e mais tarde eles nos ofereceram a janta. Na madrugada foi difícil dormir pois começou uma tempestade que fazia o chão tremer. A localidade se chamava "Cochilha do Pau Fincado"
Pegamos vento contra durante o dia. Em Rosário do sul, devido ao temporal no dia anterior, não tinha luz nem água em vários estabelecimentos, o que dificultou para nos reabastecer. Alugamos uma cabana.
Estragou a rosca do parafuso que segura o canote do banco. Para poder seguir viagem peguei uma braçadeira que tinha no meu kit MacGyver e fixei a altura dele, porém ainda ficava girando, mas já era melhor que pedalar em pé. Estava escurecendo quando chegamos em Santana do Livramento. Ficamos no Hotel Estrela Palace (sim, tem exatamente o mesmo nome do hotel de Estrela, minha cidade natal).
Arrumamos o canote numa loja de bicicleta, e não aceitaram pagamento. Junto de Santana do Livramento está a cidade uruguaia Riveira, e é muito interessante como a cultura está misturada. Fomos nos free shops e no caminho muitas pessoas vinham conversar com a gente. Um cara que gritava "Imprensa!" veio fazer uma entrevista para o jornal dele.
Um uruguaio nos convidou para ficarmos na sua casa. Anotamos o endereço, depois o encontramos em casa. O Yony, como se chamava, conversava muito e se mostrava atencioso perguntando se não faltava nada. Fomos muito bem acolhidos.
O pneu da minha bike estava com um furo minúsculo que só conseguimos encontrar depois que o Fafa afundou a câmara numa pia na rodoviária. Me despedi do Fafa que acompanhou toda travessia do pampa gaúcho.
Agora, sozinho, me dou conta que estou tornando um sonho em realidade. Me sinto um pouco ansioso mas muito paciente.
Logo mais estarei saindo do Brasil e entrando em terras desconhecidas. Me sinto cheio de energia para viver o que vier pela frente.
As cochilhas do pampa gaúcho vão ficando mais longas e menos íngremes até se tornarem uma planície. Árvores passam a ser mais raras e arbustos começam a tomar o lugar delas. Essas mudanças são observadas muito lentamente ao longo de vários dias. Este para-lama transparente que emendei na roda dianteira não resistiu mais muitos dias.
O dia estava ótimo para pedalar: clima bom, estrada pouco movimentada, acostamento bom e nuvens bonitas. Vi os cata-ventos de energia eólica e me senti como um Dom Quixote moderno. Apanhei no chão um pedaço de placa de carro "RS - Uruguaiana" casualmente perto de cruzar a fronteira. Pulei a cerca e fiz acampamento selvagem entre as macegas.
Mais fotos do trecho no Rio Grande do Sul
Dia bom. Cheguei cedo na cidade de Artigas. Uma senhora bem querida me recebeu no centro de informações turísticas. Disse que o camping aberto da praça era perigoso portanto fui para um camping no final da cidade. Ganhei um chip de celular num bazar.
Fiz 100km sem muita dificuldade, talvez por causa do vento a favor. Os uruguaios que encontrava pelo caminho normalmente me cumprimentavam simpáticos. Visualizo da rua um conjunto de árvores agradável para acampamento e não perco a oportunidade.
Depois de passar por alguns povoados, fui perguntar para as pessoas por lugares que pudesse armar la carpa. O policial disse que só tinha campo, uns rapazes me sugeriram um lugar embaixo de uma ponte. Não me atraí pela sugestão, segui pedalando e o que me sobrou foi uma plantação de eucaliptos onde não chamaria atenção. Normalmente pulava a cerca e deixava a bici presa do lado de fora. Neste dia podia andar, porém precisava descansar.
Vi um tatu bebê, um graxaim-do-campo caçando e muitas cutias (roedor gordinho). À noite sou contemplado com uma enorme quantidade de vaga-lumes no campo, algo que nunca tinha visto antes.
Nos pequenos povoados por onde passei, as casas são pequenas e simples, não vi mercados ou lojas com fachadas chamativas.
Em Salto conheci o Gianfranco e a Lidka pela plataforma de hospedagem solidária Warmshowers.
Passei pela cidade, visitei o zoológico e as praças.
A barca para cruzar o Rio Uruguai não saiu hoje devido ao tempo ruim, e o Gianfranco disse para eu ficar mais um dia. Acompanhei eles até o local onde confeccionam móveis artesanais. A casa foi construída com madeira e isopor por eles, e não usam a rede elétrica, apenas placas solares. Eles falam polonês, e o Gianfranco um pouco de português também.
Mais fotos do trecho no Uruguai
Novamente acordei cedo para tentar pegar a barca. Consultei alguns funcionários mas ninguém sabia exatamente onde nem quando ele saía. Para me deixar mais desinformado, quando ouvia a palavra viernes (sexta-feira), deduzia que significava inverno. Enfim, nem cheguei a ver a barca então fui até o terminal de ônibus onde casualmente estava para sair um. Tirei os baldes (alforges), a roda da frente e larguei tudo no bagageiro. O ônibus cruza o rio por uma barragem em alguns minutos. Registrei passagem na aduana Argentina. Em Concórdia, fui na loja da Claro para fazer um novo chip de celular. Saindo da loja, no meio de muita gente chega um pai andando com sua família e me cumprimenta, dizendo que também andava de bike. Estava junto da mãe e duas filhas, todos sorridentes e mais fortinhos, ressaltando minha magreza. Depois se aproximam para cumprimentar com um beijo de bochecha. Isto fez meu dia mais alegre. Só mais tarde descobri que aquele é um cumprimento comum na Argentina. Dei uma volta pela cidade, troquei pesos com um cidadão, depois me fui em direção ao povoado de General Campos.
Na maioria do caminho tinha uma faixa bloqueada, devido à obras. Era como um ciclovia gigante, perfeita pra andar de bici, foi uma maravilha. Na entrada da cidade, um pedalante local me acompanhou e mostrou uma praça onde eu podia ficar. No mercado, um senhor me sugeriu avisar a polícia que ficaria por ali e assim o fiz. Me sentia muito seguro e tranquilo, e para melhorar não havia contraindicação da polícia. Chegando na praça, veio um garoto de bike com umas conversas um pouco confusas. Ele contava coisas que nitidamente eram inventadas como uma viagem que fez pelo Japão. Precisava armar acampamento, cozinhar e descansar, então para ele sair da minha cola acabei o ignorando. Talvez ele apenas queria um pouco de atenção, mas como começou a falar sobre ir viajar comigo, tive que desplistá-lo.
Antes de dormir, fui dar uma volta na pacata cidade e acabei presenciando à distância o final de uma cerimônia de casamento. Voltando para a praça onde estava armada minha barraca, apareceram uns adolescentes escutando reggaeton alto no carro, logo já desarmei a barraca e movi para outro canto mais distante. Ali conheci o Lizandro, um jovem professor de música, e um amigo dele. Haviam sido avisados que eu estava ali pelos pais de um deles com quem havia me encontrado logo que cheguei. Conversei sobre a rota e sugeriram conhecer o município de San Marcos Sierras. Lizandro tocou umas músicas com seu violão e seu amigo fazia segunda voz. Uma das coisas que buscava na viagem era ouvir a música local, mas não imaginava que seria no primeiro dia na Argentina, nem que ela viria até mim. Que coisa boa ouvir uma canção castelhana de alguém com idioma nativo. A música ¿Qué Pasó? da banda Bersuit Vergarabat acabou se tornando trilha sonora no vídeo que fiz.
Domingo. Na mesma praça, fui convidado para um assado num aniversário! Era um grupo de amigos motociclistas. Eles vinham conversar e tirar foto comigo. A Graciela me ofereceu carona até a cidade de onde ela vinha. Ela era professora e costumava pegar carona na estrada para dar aula, algo bem comum por ali. Tive dificuldade de entender pra onde ela ia me levar. Só quando descobri que a letra B tem som de V que consegui achar Bovril no mapa. Saía um pouco do meu percurso, mas já evitava uma estrada um pouco mais movimentada do que o normal. Já escuro, avisei a polícia de Bovril, e eles me indicaram um camping. Não tinha ninguém lá mas fui entrando, afinal tinha a permissão da polícia. Ao sair do banheiro depois de um ótimo banho, surgiu um cara perguntando o que eu estava fazendo ali, expliquei a minha situação e ele disse para eu sair cedo no dia seguinte.
Andei 100km, cheguei cedo e não muito cansado, parece que estou criando resistência. Eu vinha acompanhando o blog dos Pedarilhos pois faria um trajeto semelhante ao deles. Nesse dia queria parar no Parque Rural Enrique Berduc, um lindo camping free! Pelo menos naquele dia. Este parque se encontra dentro do Parque Nacional San Martin, um terreno que foi doado com a condição de que fosse um Parque Nacional.
Uma imagem muito confortante aos olhos de um cicloviajante:
Mais fotos na província Entre Rios
Fui até o município de Paraná na entrada do túnel onde um supervisor me levou numa caminhonete até o outro lado do rio Paraná. Acabei perdendo pela segunda vez os óculos EPI de sol, então dei umas voltas pela cidade até arranjar um novo. Queria também trocar uns reais por pesos. Esperei até o câmbio abrir depois das 16:30h conforme tinham me informado, mas não abriu. Fui para o camping municipal de São Tomé, cidade vizinha.
Voltei até Santa Fé sem a bagagem para trocar reais no câmbio, porém pediram o passaporte, então tive que voltar para pegar. Comecei o dia pedalando 15km em vão. Segui até Sá Pereira. Lá fiquei nos bombeiros onde fui muito bem recebido. Fomos buscar uma janta e eles não aceitaram meu pagamento.
Esperei nos bombeiros até parar a chuva. Até aqui a primeira chuva desde o Rio Grande do sul, porém nem atrapalhou. A estrada estava ótima, bem pouco movimento, vento favorável. Parei em uma pequena cidade chamada Colonia Cello cuja praça é quase maior que a própria cidade. Como de costume, fui na polícia, mas não tinha ninguém. Havia uma missa terminando na igreja ao lado, provavelmente toda população estava lá, inclusive os policiais. Um morador começou a conversar comigo e em poucos segundos já estava oferecendo pouso em sua casa. Gaston, Sofía e a filha Anita são muito queridos. Sofía toca violão e canta muito bem. Ela me apresentou vários gêneros de músicas argentinas como zamba carpera, chamamé, carnavalito, gato e chacarera. Sou muito agradecido por essa imersão de cultura através da música que tive.
Chego na Província de Córdoba na cidade de San Francisco. Passando por uma rótula/rotatória, um motorista grita de longe "¿donde es?" e respondo ele nos poucos segundos até nos perdermos de vista. Um outro motorista faz sinal para eu parar e me oferece um pedaço de pizza! Já tinham me parado no meio do pampa gaúcho para dar umas laranjas e bergamotas, mas uma pizza quentinha perto do horário do almoço foi muito inesperado.
Por muita sorte no dia que eu mudo de direção na estrada, o vento também muda a meu favor. Farei um desvio para evitar a capital de Córdoba. Em La Paquita um policial muito prestativo me levou até um local tipo um CTG onde pernoitei. Uma pessoa no local convida para um mate na manhã seguinte e também para o aniversário de um bebê de 1 ano, porém decido que vou seguir.
Durante a manhã no caminho até Miramar vejo algumas centenas de pássaros atravessando a rua voando. No centro do continente acabo então me deparando com um mar. É a Laguna Mar Chiquita, tão grande que não se vê o fim no horizonte. Vejo flamingos de longe. Passo pelo hotel abandonado Vienna e fico num camping próximo.
Pedalo uns 40km até outro ponto próximo da laguna, onde paro num camping. Como é domingo, acabo me juntando a um grupo de homens argentinos que estão fazendo um assado.
Mais fotos do trecho Santa Fé e Laguna Miramar
Com vento a favor na tarde, acabo pedalando bastante e passando por quatro povoados, porém senti leves dores no joelho e no punho. Sinto que devo fazer um dia de descanso. Em um dos vilarejos, uma criançada ainda com uniforme da escola, se aproxima para conversar. Disseram que já passaram viajeiros de vários outros países. Um garoto me levou até sua casa para buscar água e fez questão de ir junto me orientar para a saída da cidade.
Decido ficar em Cañada de Luque, então passo na polícia, mas não tinha ninguém. Pessoas passando na rua apontam para uma loja onde dizem ter alguém que pode ajudar. Na loja indicam à mim ir acampar atrás do museu. Em pouco tempo e com pouco esforço já tenho um local para pernoitar graças à pré-disposição das pessoas. Mas não um é local que me sinto confortável para passar um dia de descanso.
Esperei a chuva passar, fiz sanduiches e saí perto do meio dia.
Depois de quase um mês pedalando em pampas e planícies, vejo no horizonte as Sierras de Córdoba, o que dá muita motivação para seguir em frente apesar de precisar repousar. Consultei a altimetria do trajeto e vi uma subida de 300m distribuida ao longo de 40km, apesar de parecer que ainda estava em uma planície. Um aclive imperceptível aos olhos mas que dava a sensação de estar mais fraco ou do pneu estar murcho. Certamente me confundiria caso não tivesse o dado da altimetria.
No meio do caminho vi que estava sem a tampa do balde-alforge e voltei até encontrá-la atirada no chão. Em Villa del Totoral montei a barraca ao lado do rio.
Tinha ouvido falar que na Argentina as margens dos rios são públicas e é permitido acampar. Até que enfim um local perfeito para ficar um dia a mais. Gramado com bastante espaço, algumas árvores, água cristalina vindo dos Andes, parrillas, pouquíssimo movimento e bem perto da cidade.
Aproveitei o dia fazendo com calma as refeições e apreciando o local.
A partir daqui tudo começa a mudar. A estrada de rípio toma o lugar do asfalto tornando a paisagem menos antropizada. Não sei se era por estar muitos dias na planície, mas fiquei maravilhado ao ver as montanhas das Sierras Chicas. Começo a apreciar uma grande variação das paisagens, do clima, das núvens, da vegetação e dos cheiros. Aquilo era diferente de tudo que já tinha visto e sentido, até demais para um só dia. Depois ainda veio uma chuva, deixando o céu ainda mais colorido.
Passo pelas Cuevas de Ongamira, grutas que são verdadeiras esculturas naturais. Queria ficar em algum camping pelo caminho, mas estavam fechados, então segui até San Marcos Sierras, município que o Lizandro de Entre Rios me indicou.
Cidade muito tranquila sem estradas asfaltadas, com um clima mais artístico e hippie. As placas que nomeiam as ruas usam uma fonte cursiva. Ao chegar no camping eu já estava seco. Lá havia um violonista compondo uma música.
Pedalei somente 20km até Capilla del Monte, mas tinha muito morro para atravessar e peguei bastante sol. O turismo lá é baseado em ovnis e alienígenas, e existem lendas relacionadas ao cerro Uritorco que se vê da cidade. Fiquei no camping municipal, onde aproveitei para combinar uma hospedagem solidária do Warmshower na cidade de Tanti.
Mais fotos do trecho nas Sierras Chicas de Córdoba
Passei por várias cidades, numa delas vi desfiles de grupos tradicioinais. Pousei num camping de Cosquín.
Cheguei cedo em Tanti e descansei numa sombra na beira do rio. Muitos rios que passei tem a borda com pouca vegetação, permitindo fazer caminhada ou acampar. Fiquei na casa do Franco que conheci no Warmshowers, ele me deu umas dicas sobre o caminho para visitar Los Gigantes. Sugeriu ir conhecer a Sierra Grande de Cordoba. Ele fazia questão de dormir numa maca de fisioterapia e me ceder seu quarto e sua cama.
Saí bem cedo da casa do Franco. Subi os 1000m de estrada de chão. Incrível como a paisagem fica mais bonita quando não tem cercas na divisa das estradas com os terrenos. Esse era um tipo de local que desejava passar. Nenhuma marca de humanos até o horizonte exceto a estrada. Apesar de não ter sombra, não lembro de ter ficado com muito calor. Vou cada vez chegando mais perto de Los Gigantes. São montanhas praticamente sem vegetação, com bastante rocha aparente. Impressionante, muito diferente do que estou acostumado a ver.
Havia um camping perto da montanha, mas estava mais afim de fazer acampamento selvagem. O Franco havia sugerido um lugar perto do rio, achei perfeito.
Em Salsacate, o camping da cidade estava fechado. Logo mais já iria escurecer, então comecei a observar possibilidades de pernoite na estrada. Vi um campinho de futebol atrás de uma academia, consultei o proprietário e fiquei por ali mesmo. Pude usar o chuveiro quente.
Tinha mais subida pela frente, mas o que dificultou foi a estrada de rípio com costelas de vaca (pequenas ondinhas de terra) e o vento contra. Cheguei em Los Tuneles que se trata de uma série de túneis que foram feitos para descer a serra. Lá de cima apenas se via uma planície sem fim com um horizonte tênue, que parecia mais um mar.
Aqui eu tinha duas opções. Descer pelos túneis e seguir nessa imensa planície em uma estrada de chão que me levaria mais perto dos Andes. Ou desviar ao sul para passar pela Sierra Grande. Acabei optando pela segunda opção, conforme sugeriu o Franco, mas antes fui visitar pelo menos os dois primeiros túneis.
Ao meio dia parei num restaurante na beira da estrada, porém os preços não estávam nada razoáveis. Ao sair, umas pessoas de uma mesa me chamam para sentar junto. Um casal, uma filhinha e uma vovó. O Max contou sua experiência acampando somente com saco de dormir ao ar livre num deserto em Mendoza.
Parei em Pocho, conversei com um policial, mas ele não sabia onde podia ficar. Sugeriu falar com a cuidadora da igreja. Passei na despensa (mercadinho) e a dona acabou ligando para a cuidadora e ela deixou acampar ao lado.
Mais fotos do trecho Los Gigantes e Los Tuneles
A estrada continuava de rípo. Encontrei o policial de Pocho no caminho. Na cidade de Cura Brochero tem um rio muito bonito que passa entre rochas. Tem muitos campings, então fiz uma pesquisa de preço e acabei ficando no municipal, que não tinha ninguém, ou seja, era free.
Passei por muitas cidades e parei em La Paz. Fiquei no camping municipal que também não tinha ninguém.
Continuei indo a sul com uma bela vista para a serra na minha esquerda. Estava precisando de um banho quente e descansar pois nos últimos campings não tinha chuveiro. Cheguei cedo num camping pago em Carpinteria, lavei roupas e dei um banho de sol no saco de dormir.
Passei por mais alguns pueblos, dentre eles Papagayos, uma pequena vila de menos de mil habitantes. Na praça da vila havia umas bandas se apresentando, portanto sem dúvidas fiquei ali. Assisti à três bandas de chacarera, cada uma muito particular. Usavam violão, violino, bateria e o bombo legüero.
As pessoas, ao ovirem o chamado ¡Adentro!, começavam a coreografia tradicional. Davam giros com os braços estendidos acima da cabeça e estalando os dedos. Outros demonstravam suas habilidades com sapateados complexos.
Fui para o camping municipal. Tinha bastante vento então acabei cozinhando de baixo de uma parrilla.
Comecei o dia com uma leve decida de 30 kilometros em estrada de rípio. Andei bastante e descansei ao meio dia na praça de um povoado. Estava atirado na grama e duas mulheres me convidaram pra ir na sua casa. Ganhei almoço. Conheci o filho e seus amiguinhos que andavam de bici. Eles adoraram ver minha bike carregada.
Seguindo até La Toma, percebo que estou entrando em região desértica, não só pela ausência de árvores mas pelos santuários da Difunta Correa. Segundo a lenda, Deolinda Correa era uma jovem mulher que morreu de sede no deserto, mas o bebê que levava no colo sobreviveu com o leite que restava dela. Por isso há nesses santuários uma grande quantidade de garrafas de água.
Fiquei num camping que tinha um rio meio seco e feio.
Encontrar local para pernoitar em uma cidade grande pode ser mais custoso e demorado. Então, antes de chegar na capital San Luis, já estava observando as possibilidades de pernoite. Um ciclista começou a conversar comigo e sugeriu ir no Lago Potrero de Los Funes. Ele ligou para o dono de um camping que deixou ficar de graça. O lago é rodeado por montanhas e um circuito de corrida. Tive um pouco de dificuldade para achar o camping.
Casualmente encontrei um casal de velinhos viajando em trailer, que também já havia visto no dia anterior. Conversamos um pouco em espanhol e inglês, me mostraram o trailer e me deram um chocolate.
Em San Luis conheci o Santiago com quem tinha feito contato pelo warmshowers. Ele também já fez cicloviagens. Cheguei ao meio dia e almoçamos juntos. Passeamos na praça e aproveitei pra tentar sacar dinheiro, mas não consegui. Ele me mostrou um parque de Le Parkour que tem na cidade. À noite chegou mais gente da família dele. Agradeço muito ao Santiago, seus pais e irmãos.
Uma decida constante e leve me fez andar 40km sem paradas. Já distante da serra, a paisagem é bem arbustiva. Cheguei em Beazley, uma vila meio desértica.
O próximo ponto de apoio seria em uns 160km, em Monte Comán. Até o momento a maior distância que percorreria sem a garantia de água ou comida. Além disso não deixei de reparar no mapa que há um trecho de 110km sem absolutamente nenhuma curva e muito provavelmente sem sombra e sem distração na paisagem. Sinto que será uma interessante travessia.
Teria que andar mais um pouco caso quisesse aproveitar o vento a favor no dia seguinte, conforme já tinha visto no app Windy. Descansei na praça de Beazley e segui. Antes de escurecer, escolhi para pernoitar, o espaço que tivesse menos arbustos e menos visibilidade da rua. Decidi dormir somente com o saco de dormir e o colchonete, sem montar a barraca, ou bivaque como é chamado esse tipo de acampamento. Não foi muito confortável porque tinha um pouco de vento e o chão era de areia. Mas valeu muito a pena pois vi um meteoro entrando na atmosfera. O rastro dele se estendeu por quase todo céu, e ao final se dividiu em partes menores que se desintegraram. Sem dúvida o maior que já vi.
Mais fotos do trecho em San Luis
O acampamento bivaque me adiantou bastante. Comecei o dia pedalando com uma bela vista do sol nascendo e uma reta infinita pela frente. Passei praticamente o dia todo em cima da bike, pois estar em movimento refrescava mais do que ficar ao sol. A única sombra que encontrei foi em uma árvore espinhosa. Ela não tinha folhas, mas tinha um pedaço de papelão preso. Foi ali que cozinhei uma refeição e descansei um pouco.
Percebi que o horizonte, em uma estrada plana, não é tão longe quanto parece ser, pois observando pontos de referência, vi que cheguei até o ponto visível mais distante várias vezes.
Apesar de ter comida e água para mais um dia, um leve vento a favor me ajudou a vencer os 140km até a cidade. Maior distância que percorri em um dia até o momento.
Cheguei no povoado de Monte Comán, perto de escurecer, mas com tempo suficiente para encontrar um local para pernoite. O policial da cidade não sabia onde eu poderia ficar. Sem muita disposição apontou com o dedo um local, mas não me parecia muito interessante. No kiosko (mercadinho), todos estavam curiosos e vinham conversar. Um moço queria me levar até outra cidade, outros sugeriram lugares para acampar. O dono do kiosko me deu uns lanches da padaria. Eu estava bem cansado, e poderia ficar esgotado se fosse atrás de camping ou dos locais que tinham me sugerido. Então a alternativa mais sensata foi ficar no primeiro terreno baldio que vi. Um local bem tranquilo, sem visibilidade da rua, foi uma boa escolha.
Havia uma leve subida que me exigiu bastante esforço, pois ainda estava cansado do dia anterior.
Fiquei em dúvida entre almoçar quando chegasse em San Rafael ou no meio do caminho. Esse dilema foi muito comum em outros dias da viagem. Fazer uma pausa para cozinhar pode me dar bastante energia, mas acaba sendo custoso fazer a digestão e retomar o ritmo da pedalada. Por outro lado, se deixo para cozinhar no destino final, consigo chegar cedo, mas preciso ter muitos lanches disponíveis.
Escolhi fazer o almoço na praça de um povoado no caminho. Depois fiquei num camping em San Rafael.
Tirei o dia para descanso. Aproveitei para sacar dinheiro e fazer uma manutenção básica na bicicleta.
A cidade está cheia de pequenos canais que transportam água dos Andes. Vi até um passando por cima do outro, algo que poderia chamar de um "viaduto hidráulico".
Vizinhos de camping me convidaram para ir de carro até um dique (represa), que ficava há uns 40km da cidade. No caminho tinham vistas incríveis para uns cânions enormes. Eu estava perto deles e mal sabia que eles existiam.
Passei por grandes campos de oliveiras e por um salar. No horizonte avisto algo que suspeito ser a Cordilheira dos Andes. Levei mais água do que o necessário pois não esperava encontrar um parador. Antes de escurecer, meu corpo pedia para parar, mas o vento a favor estava bom demais para desperdiçar. Fiz acampamento selvagem perto da estrada onde não me veriam da rua.
De fato estou vendo os Andes. Primeira vez que vejo neve também. Inicialmente apenas surgem manchas brancas "voando" dos picos nevados, pois o forte reflexo do sol na neve ultrapassa o ar da atmosfera, enquanto que o resto da montanha não.
Depois de umas leves subidas cansativas, cheguei em El Sosneado e na famosa Ruta 40. Na cidade, o moço do parador me ofereceu um abrigo para a noite. Tive uma tarde sobrando finalmente.
Chego no camping municipal bom e barato de Malargue. Foi ali que encontrei os primeiros cicloturistas, desde o início da viagem. É um alívio ver seres da mesma espécie e se sentir um pouco menos excêntrico.
Um casal de Buenos Aires me dá umas dicas do percurso, pois eles vinham do sul. Conheço o Rafael, um mexicano que também está indo para o sul. Pensava em ficar mais um dia no camping, mas queria acompanhar o Rafael.
Seguimos eu e o Rafael em uma rota que se aproximava mais da cordilheira. Avistamos muitas montanhas de diferentes formas e cores. A ausência de vegetação expõe linhas que demarcam eras muito longínquas, porém com um pouco de imaginação, parecem se movimentar como uma onda.
Passamos a noite em um camping na localidade de Bardas Blancas.
Seguimos em um trecho de rípio um pouco mais difícil na ruta 40, porém com um cenário formidável e selvagem. A estrada acompanha o curso do Rio Grande, com a cordilheira de um lado e o deserto do outro.
Estes ermos eram novidade para mim, mas o Rafael parecia estar mais acostumado, pois vinha de uma longa jornada desde o México. Diante da vasta possibilidade de locais para montar acampamento, deixei que ele escolhesse primeiro.
Mais fotos do trecho na Provincia Mendoza
Levantamos acampamento com paisagens incríveis em todos lados. Passamos por uma cansativa subida em estrada de rípio, que adentrava um pouco em direção à cordilheira.
Observei um grande rebanho, no topo de um morro, de algum animal que não consegui identificar. O Rafael parou também, e percebemos que os animais desciam correndo em nossa direção. Eram centenas de cabras bebês, de várias cores, berrando "bééé". Elas pulavam e corriam até que pararam todas na estrada olhando para a gente, provavelmente esperando que fossemos alimentá-las.
A altitude elevada nos proporcionou um horizonte distante, apesar de não estar nem perto dos pontos mais altos da cordilheira. Começamos a descer em curvas num asfalto intacto, olhando rapidamente para todos os lados para aproveitar cada segundo. Majestosas nuvens escuras e alguns raios de sol tornaram o visual único. Foi mais impressionante que qualquer foto ou filme que já tenha visto.
Vimos um totem indicando o início da região da Patagônia! É motivador pensar que já passei por tanta coisa, e ainda tenho a Patagônia pela frente.
Começou a esfriar um pouco, então pela primeira vez, precisei usar mais roupas. Já estava na hora, pois fazia dias que pedalava para o sul. Presenciamos o desmoronamento de um pedaço da estrada, o que nos fez perceber que algo incomum havia com o clima. Chegando na vila de Barrancas, vimos montes de granizo por todo lado. Pessoas varriam o granizo para liberar passagem. Moradores disseram que faziam anos que não caía uma chuva tão forte, mas nós só pegamos um leve chuvisco durante o dia.
Em Buta Ranquil, estávamos em dúvida entre ficar ou seguir. Não achamos camping, então o Rafael me apresentou o iOverlander, um aplicativo colaborativo no qual as pessoas informam locais onde acamparam. Seguimos até um ponto interessante para acampamento selvagem, ao lado de umas ruínas. Vimos uma chuva muito forte caindo distante, e novamente nos safamos.
Paramos em uma paisagem tão interessante que até o Rafael tirou foto. Foi a primeira vez que o vi pegar sua câmera. Eram montanhas cujas camadas geológicas estavam bem visíveis. Montamos acampamento no camping municipal de Chos Malal, depois passamos na praça para usar wi-fi.
Fomos até Chorriaca, uma pequena vila. Na polícia, perguntamos onde poderíamos pernoitar e sugeriram ficar ali mesmo, no próprio jardim da sede da polícia.
O Rafael e eu conversamos em inglês, já que meu espanhol ainda não estava bom. Depois de um tempo comecei a compreender o ritmo dele. Pedalar um pouco mais devagar, aproveitar as descidas para descansar e só fazer paradas se necessário. Passei a adotar esse ritmo também. Outra dica muito valiosa foi de fazer cocô sempre de manhã, para não precisar durante o dia. Uma vantagem de pedalar acompanhado é poder aparecer nas fotos.
Começamos o dia com uma longa decida de 40km. Para compensar, antes de chegar no camping de Las Lajas, pegamos um vento contra forte.
Os próximos dias teriam bastante subida e poucos pontos de apoio, então decidimos descansar mais um dia em Las Lajas. Fui trocar o punho do guidão, o cabo de marcha e a roldana do câmbio que estava quebrando.
A partir daqui, a ruta 40 segue mais pelo lado do deserto argentino, por isso sairíamos dela e seguiríamos em uma ruta mais próxima dos Andes.
Realmente, a subida era interminável, e para dificultar, tinha vento contra. Mas agora, podia ver a neve na montanha mais de perto.
Achamos um local incrível para acampar. Tinha um aconchegante gramado colorido com tons amarelos das flores. No meio deste grande carpete verde e amarelo passava um córrego de água cristalina. Em volta tinham imponentes araucárias, de uma espécie local, com galhos mais longos e espinhos maiores comparado com as do Brasil.
Durante o dia surgiram nuvens de vários formatos. Como se as paisagens não bastassem, o céu nos presenteia com lindas surpresas.
Me despedi do Rafael, pois ele já tinha vôo comprado em Ushuaia e precisava apressar um pouco a viagem. Foi muito boa a experiência de viajar junto. Pude conhecer a perspectiva de alguém que está viajando há mais tempo. As vezes é um pouco mais difícil tomar todas decisões com alguém do que sozinho, porém nos entendemos bem. Esquecemos de tirar uma foto nossa, mas talvez porque realmente aproveitamos o momento.
Estava na dúvida se ia conhecer a lagoa na Vila Pehuenia ou se seguia. O vento me convenceu a seguir até um local que vi no iOverlander, ao lado do rio Aluminé.
Segui até o município de Aluminé. O camping municipal era caro, então fui até a praça, descansar e decidir o que fazer. Aproveitei para carregar o power bank (bateria externa), cozinhar, e usar a wi-fi.
Acabei perdendo, em algum lugar, o meu kit de eletrônicos que tinha o termômetro, o chip de celular brasileiro, o fone de ouvido e a lanterna de cabeça. Fiquei triste e decepcionado pois tinha pago caro a lanterna de cabeça. Mas depois lembrei que podia continuar a viagem tranquilamente sem estas coisas. Refletindo sobre essa lanterna, percebi que as vezes é melhor não ficar dependente do melhor equipamento, mas sim se acostumar com o mais comum e que seja fácil de repor.
Segui até encontrar um local perto do rio Aluminé. O primeiro já estava ocupado por uma família, então segui até o próximo. Sempre tento evitar chegar perto da noite, mas dessa vez não consegui e cheguei bem cansado. Me virei com a luz do celular para cozinhar.
Desde Mendoza, pedalo entre os Andes e o deserto argentino. Passei novamente por deserto, em uma região onde não há cercas separando a estrada das terras. Às vezes, nessas paisagens agrestes, algo que não entendia muito bem acontecia comigo. O fato de estar em um lugar muito diferente, fazendo algo incomum, fazia meus pensamentos resgatarem memórias ou sentimentos mais remotos. A mente começa a devanear, quase como num sonho, no qual a criatividade floresce. Depois de ter retornado da viagem, vi que Saint-Exupéry, em um de seus livros, relata uma experiência semelhante no deserto do Saara. Ele ainda constata que o nosso lar acumula "[...] no fundo do coração, uma massa escura da qual brotam como nascentes, os sonhos". Nesse dia, portanto, não estava delirando como imaginei. Era só mais um curioso sintoma de viajar.
Passei por Junin de los Andes e o camping estava mais caro do que costumava pagar. Fui seguindo peladalando até algum local para acampar perto da estrada, mas acabei andando demais até encontrar um. Fiquei próximo de uma ponte ao lado de um rio muito bonito de água cristalina. Dessa vez tentei cozinhar antes de escurecer.
Levantei acampamento cedo e cheguei antes do meio dia na cidade de San Martin de los Andes. O Camping também era mais caro, mas acabei ficando pois tinha que me preparar para os próximos dias, na rota dos 7 lagos. Comprei uma lanterna de cabeça comum, um gorro e uma chave allen 3mm que poderia precisar para ajustar o manete de freio. Peguei mantimentos no mercado e numa feira.
Mais fotos do trecho em Neuquén
Levantei antes de amanhecer. Na saída da cidade, dois cachorros me acompanharam. Nesse dia vi mais cicloviajantes do que todos os dias somados desde o início da viagem. Encontrei um casal de israelenses e paramos para lanchar e conversar.
Já tinha me informado de que em alguns lagos há campings libres, que são locais onde se pode acampar, porém normalmente não há estrutura. Cheguei no Lago Villariano a tempo de fazer um almoço. Passei a tarde tocando ukelele, observando pássaros, passeando na floresta, filmando patos na lagoa e escrevendo o diário.
Completei dois meses de viagem.
Próximo destino era o Lago Espejo, também com camping libre. Descansei quando cheguei pois havia muitas subidas e descidas. Cozinhei uma massa para comer no almoço e durante a tarde.
Conheci um motoviajante e o Martin, mochileiro viajando a dedo (de carona) desde Mar del Plata. Saímos para pescar em um outro lago, eu fiz umas tentativas, mas não pegamos nada. Me contaram sobre uma erupção que deixou cinzas por todo lado. Realmente, podia se ver uma espessa camada de cinzas no solo. Quando voltamos, minha barraca estava cheia de cinzas por fora e por dentro, por causa do vento.
Acordei tarde e reservei o dia para relaxar. Assim como os dois últimos dias, o clima estava nublado e chuviscando.
Tomei um mate com o Martin. Ele foi na rua esperar alguma carona, e eu me apossei do lugar onde ele estava pois não pegava vento e tinha uma fogueira ativa. Fiz um almoço e duas jantas no fogo.
Ao escurecer, chegaram uns jovens que viajavam a dedo. Um alemão, uma chilena, um portugês, um chileno e um francês. Vieram na minha fogueira, já que estava tudo frio e molhado.
Não me impressionei tanto com as paisagens das lagoas. Talvez tinha aumentado minha expectativa com o que me contavam e talvez pelo clima.
Estava chovendo um pouco, mas precisava seguir pois não tinha mais muita comida. Foi difícil levantar. A terra era composta por uma areia escura misturada com partes orgânicas. No fim, esse composto estava colado em tudo. Minhas mãos, além de geladas, também tinham essa terra, e não adiantava lavar, pois precisava pegar nos equipamentos que estavam sujos. A barraca depois de empacotada, ficou bem maior e quase não consegui prender na bicicleta.
Cheguei cedo na Villa la Angostura, e assim que parei, comecei a sentir o frio. Passei no mercado, então preparei um arroz e uma carne de cedro (porco) na praça onde tinha wi-fi. Achei que comer algo quente iria ajudar, mas tinha muito vento e meus pés estavam molhados e frios.
Segui na estrada até encontrar um camping.
O dia nasceu bonito e com muito sol. O lago estava azulão finalmente. Cheguei em Dina Huapi cedo e fiquei o resto do dia num local muito bom para acampar. Ao lado do lago, com muito espaço e com uma vista para Bariloche e as montanhas nevadas ao fundo. Lavei tudo e estendi ao sol até secar. Nunca teria dado tanto valor a um simples dia de sol, se não fosse antecedido de um dia frio e chuvoso.
Cheguei em Bariloche de manhã e não sabia o que fazer. Não tinha planejado nada e nem conhecia a cidade. Dei umas voltas na cidade e me deparei com uma manifestação.
Busquei informações no centro de turismo e no wi-fi de uma padaria. Decidi conhecer um tal de cerro Catedral no dia seguinte.
Com o sol se pondo mais tarde, deu tempo de encontrar um lugar perfeito para passar a noite de graça em Bariloche. Era uma praia quase deserta com um visual incrível.
Saí em direção ao Catedral e subi o cerro de teleférico. Só levei carteira, documentos, comida e água. A bicicleta, prendi em uma grade.
A vista lá de cima é fantástica. As montanhas nevadas e o verde no vale. A trilha passa por um lado da montanha que é formado apenas por pedras grandes, onde alguns pontos pontados em vermelho indicam o caminho. Depois, a trilha continua na neve, e foi onde pude tocar nela pela primeira vez. Era muito divertido descer os morros escorregando de bunda. A neve estava derretendo e criando formas muito interessantes.
Lanchei sanduíche de sardinha. Cheguei no refúgio onde as pessoas passam a noite, porém eu me programei para voltar. Lembrei que o teleférico desligaria às 17h, então apressei o passo. Logo percebi que estava muito atrasado. Passei o resto do caminho todo correndo, inclusive nas pedras. Me senti naquelas cenas de filmes de ação, onde o personagem passa por uma paisagem incrível mas não dá a mínima.
Tarde demais. Tinham passados 15min das 17h e já conseguia ver o teleférico parado. A estrada para descer era muito longa e eu não tinha quase nada de água e comida. Provavelmente chegaria de noite mesmo com o sol se pondo mais tarde. Devia ter lembrado que sou amador no trekking. Fiquei tão distraído com as paisagens e com a neve, que esqueci de estimar o tempo da volta. Mas vi bem de longe, um carro saindo dos teleféricos, então corri abandando com as mãos na esperança de que me vissem. Por minha sorte alguém do carro deve ter olhado para trás e pararam. Foi por muito pouco. De carro, demoramos bastante para descer, fiquei imaginando como seria à pé.
Minha bicicleta estava lá com meus alforges e tudo. Minhas pernas estavam muito exaustas. Ainda andei uns 19km e acampei em um local bem bonito ao lado de uma lagoa.
Cheguei cedo em Rio Villegas e comprei comida. Fui no camping de melhor preço, mas a água do chuveiro não era muito quente.
Peguei o costume de deixar uma garrafa pet aquecendo próxima da fogueira, depois trazer para dentro do saco de dormir. Mas dessa vez não consegui acender o fogo, pois tinha chovido um pouco.
Mais fotos do trecho ruta dos 7 lagos e Bariloche
Foi a noite mais fria até agora, pois tive que usar quase todas roupas dentro do saco de dormir. Parece que por aqui esfria bastante depois da chuva.
Cheguei cedo em um camping na cidade de El Bolson. Lá tinha uma linda vista para uma montanha bem alta. Dei umas voltas em uma grande feira de artesanato que estava acontecendo.
Meu pneu traseiro vinha apresentando um defeito que causava um leve solavanco. Estava usando pneus Schwalbe importados. Achei muito estranho, pois qualquer pneu comum dificilmente teria algum problema com a quilometragem que fiz. Mais um motivo para não usar equipamentos muito sofisticados. Fui na loja de bicicleta comprar um pneu comum.
O Rafael mexicano veio me avisar pelo Facebook que tinha acontecido um grande aluvión em Santa Lucía no Chile. As chuvas intensas causaram o desprendimento de um glaciar, que por sua vez derrubou uma grande quantidade de terra. Ainda não tinha mais detalhes, mas ele me disse que iria voltar até Puerto Montt e pegar uma balsa para cortar caminho. Alguma estrada poderia estar bloqueada, mas não consegui descobrir. Por enquanto resolvi seguir até descobrir algo.
Ao levantar percebi que tinha algo diferente nas montanhas. Elas eram verdes e agora estavam com o topo levemente esbranquiçado. Devia ser neve. O vento a favor ajudou, por outro lado ficou intercalando entre chuva e sol, ou seja, ficar colocando e tirando roupas.
Fiquei um tempo ao lado do centro de informações em Epuyen, usando wi-fi e cozinhando. Segui até um local do app iOverlander, estava bem agradável. Na beira da estrada mas escondido atrás de árvores, com um arroio vindo da montanha, e fiz uma fogueirinha para me distrair. Não sei por que, mas vários motoristas businavam quando passavam. Suspeitei de que estavam de alguma forma me vendo, mas não era possível pois eu nem tinha visão da estrada. Ali tinha mais um desses santuários da Difunta Correa, então no outro dia me dei conta que provavelmente era por causa disso.
Encontrei no meio da estrada um cicloturista que vinha de Ushuaia. Ele me sugeriu ficar nos bombeiros de Cholila e assim o fiz. Fiquei um tempo usando o wi-fi para salvar as fotos do celular. Também aproveitei para atualizar as redes sociais, algo que fazia com pouquíssima frequência.
Fui até a praça da cidade e conheci um casal que, assim como eu, vinha do norte. Comentei sobre a possibilidade de pernoitar nos bombeiros e fomos juntos até lá. Dessa vez até colchões nos ofereceram.
Estava indeciso se ficaria mais um dia. Era véspera de Natal e imaginei que os bombeiros talvez me convidassem para alguma confraternização. Não podia esperar muito tempo para saber e também fiquei sem jeito de pedir, então acabei seguindo.
Entrei na área do Parque Nacional Los Alerces e fiquei em um camping libre. Acabei passando o Natal sozinho, mas não tinha muita esperança de que fosse diferente. Lidar com isolamento faz parte de uma grande jornada e afinal eu estou onde quero, fazendo o que quero.
No caminho tinha uma trilha entre os bosques de Alerces. Larguei a bicicleta e fui fazer a trilha a pé. O Alerce é uma árvore conífera, normalmente bem robusta com uma casca grossa.
Fui para o próximo camping libre que tinha no parque. Foram poucos 31 quilômetros no dia, mas cheguei cansado. Estrada de chão com morros e clima variando o dia inteiro entre chuvisco, vento e sol.
Antes de escurecer já entrei na barraca para me proteger do frio. Meu vizinho de camping que estava em um trailer, veio até a minha barraca e me deu um pedaço de frango assado quentinho! Na manhã seguinte ofereceu um chá e água quente.
Depois de duas noites longe da civilização cheguei em Trevelin, e me instalei no camping mais barato. Fui no mercado recarregar os mantimentos e também dei uma revisada na bicicleta. Encontrei no camping o mesmo casal que estava nos bombeiros em Cholila.
Cheguei no CHILE!
Antes de chegar na fronteira, tinha uma interminável estrada de chão costela-de-vaca, ou chacoalha-esqueleto como já ouvi chamarem. Na aduana tinham restrições sobre passar com certos alimentos, então tive que comer todas minhas cenouras e cerejas.
Encontros entre cicloturistas no meio da estrada são sempre muito inusitados, mas dessa vez foi ainda mais. Me encontrei com um alemão e logo em seguida também apareceu uma mulher, ambos de uns 40 ou 50 anos de idade. Todos nós estávamos sorridentes e bem humorados, ainda mais com essa coincidência. O alemão era muito engraçado, queria explicar tudo sobre detalhes técnicos dos pneus de cada um.
No povoado de Futaleufu, já no Chile, me informei de que o aluvión que ocorreu em Santa Lucia tinha bloqueado uma estrada para o norte, mas para o sul estava liberado. No mercado, fiquei completamente perdido com os preços em peso chileno. Eu estava com um chip de celular argentino, então já não tinha mais internet nem encontrei nenhum wi-fi livre.
Essa é uma das travessias entre Argentina e Chile com menos altitude, apesar disso já era nítido como o clima é mais úmido e chuvoso desse lado. Acampei na beira de um rio e cozinhei dentro da varanda da barraca.
Passei por Santa Lucia. Realmente foi um grande desastre que aconteceu. A terra afundou e levou embora moradias inteiras. A cidade estava deserta e virada em lama. Muito triste. Somente vi uns guardinhas impedindo a entrada na cidade, e orientando o desvio que foi feito na estrada.
Já estava então na Carretera Austral. Era uma rota que me motivou a vir para a Patagônia, pois é uma das mais famosas entre os cicloturistas. E realmente, encontrei 6 cicloviajantes de diferentes nacionalidades somente hoje. Pelo visto, bastante gente vem fazer apenas este trecho.
Tinha muita água brotando das montanhas, tanto que teve um momento que recarreguei minha água sem sair da bicicleta. Choveu o dia inteiro, mas pelo menos a temperatura estava agradável. Fechando 106 km no dia, bem acima da média que vinha fazendo, fiquei num bosque acompanhado de umas ovelhas e vacas mansas. Não parava de chover, e eu precisava montar a barraca. Coloquei o sobreteto da barraca sobre mim e fui montando a parte de dentro. Graças ao balde-alforge impermeável, ainda tinha uma toalha sequinha pra tirar o excesso de água de mim e do interior da barraca. Foi um pouco difícil, mas no fim foi um alívio enorme estar razoavelmente seco, dentro da barraca e protegido da chuva.
Chegando na cidade de La Junta, encontro um espanhol também em bicicleta. Ele estava procurando algum hostel, mas me sugeriu ir em um camping onde tem outros cicloturistas. Lá tinham pelo menos uns 7. Foi muito bom ver tantas bikes carregadas num mesmo lugar. Aparentemente eram uns franceses e uns brasileiros. Metade do pessoal foi para um albergue/hostel pois queriam um pouco mais de conforto, mas a ideia deles era se encontrar para sair junto, então me juntei ao grupo.
Antes da saída, vi uma cena típica de cicloviajante: O espanhol, com um pedaço de corda, resolvendo um problema no pedivela da bicicleta. A solução provisória ficou bem estranha mas funcionou.
Alguns saíram antes pois iriam para o norte, então éramos 5 brasileiros e 2 casais de franceses pedalando junto sentido sul. Tinhamos rítmos diferentes, então alguns acabaram se separando. Mas depois nos encontramos em Puyuhuapi, em um pergolado coberto de uma praça onde alguns fizeram uma pausa para descansar e cozinhar. Um trecho da rua ao lado de uma lagoa estava interditada, mas uma balsa estava fazendo a conexão gratuitamente. Depois percebemos que na verdade não era uma lagoa, mas sim o oceano pacífico!
No caminho conheço um canadense pedalando no mesmo sentido, e conversamos um tempo sem mesmo parar de pedalar. No fim do dia ficamos só nós brasileiros e combinamos de comemorar o réveillon juntos no dia seguinte. A princípio poderia ser em uma tal de casa abandonada que teria mais adiante.
Ao viajar no frio, para interromper a pedalada e esfriar o corpo só com um bom motivo. Mas vimos da rua algo que parecia ser uma cafeteria, então um de nós foi até lá checar se valeria a pena fazer uma parada. Como ainda estávamos distantes da cidade, decidimos parar alí. No Refugio Río Cisnes, como chamam o local, vivem a pouco tempo, o casal José e Dayana e a filha pequena Sami. Além de ser um café, é um refugio para quem visita a carretera austral, então nos convidaram para passar a noite lá. Para o quarto de hospedes combravam uma diária, mas o camping não tinha preço, apenas pediam uma contribuição pelo banho. Abandonamos na hora a ideia da casa abandonada, pois aquele lugar estava muito quentinho e confortável para recusar.
Depois ainda chegaram os franceses, um casal de australianos, entre outros. A casa estava cheia e comemoramos o ano novo juntos. Cozinhamos lentilha no fogão a lenha e o José e a Dayana serviram pizzas caseiras de cortesia.
Ano novo!
Como não é normal cicloturista dormir depois da meia noite, o pessoal acordou um pouco mais tarde. Decidimos ficar mais uma noite, exceto o casal de australianos que seguiram viagem. O José fez um tour pelo terreno e mostrou o rio Cisnes.
Almoçamos macarrão. Um dos franceses pescou e preparou um peixe que todos acabaram provando um pouco.
Depois chegou um casal de ingleses aposentados. E para minha surpresa, de repente surge o Rafael, o mexicano que pedalou comigo em Mendoza! Cada um tinha seguido um caminho diferente mas nos encontramos de novo!
Ao escurecer, chega um cara em uma camionete 4x4 e à primeira vista eu acabo o julgando como alguém que não se encaixava com as pessoas dali. Ele traz um violão e humildemente me mostra uns MPB's calminhos e tocamos umas junto e acabo me dando muito bem com ele.
Ao escurecer, chegou um brasileiro numa caminhonete 4x4 grande. De primeira, achei que ele não combinava com a gente ali. Mas ele trouxe um violão e, de um jeito simples e humilde, me mostrou algumas músicas calmas de MPB. Tocamos juntos e acabei me dando bem com ele.
Coyaique
As montanhas ficam mais distantes menos selva, menos chuva. vento a favor.
ficamos eu e o nilton no el camping
tinham mais uns cicloviajeros lá.
fui no mecado fazer compras mas tem muita fila.
...
A viagem continua... Em breve será publicado o restante.